24 de nov. de 2010

Considerações sobre o que é o Humano e o que é Humanizar


O que é o humano? O humano é o efeito da combinação de três elementos: a materialidade do corpo, a imagem do corpo e a palavra que se inscreve no corpo.

O que diferencia o ser humano da natureza e dos animais é que seu corpo biológico é capturado desde o início numa rede de imagens e palavras, apresentadas primeiro pela mãe, depois pelos familiares e em seguida pelo social. É esse banho de imagem e de linguagem que vai moldando o desenvolvimento do corpo biológico, transformando-o num ser humano, com um estilo de funcionamento e modo de ser singulares.



O fato de sermos dotados de linguagem torna possível para nós a construção de redes de significados, que compartilhamos em maior ou menor medida com nossos semelhantes e que nos dão uma certa identidade cultural. Em função da dinâmica de combinação desses três elementos, somos capazes de transformar imagens em obras de arte, palavras em poesia e literatura e sons em fala e música, ignorância em saber e ciência. Somos capazes de produzir cultura e a partir dela, intervir e modificar a natureza. Por exemplo, transformando doença em saúde.



Entretanto, acontece que a palavra pode fracassar e onde a palavra fracassa somos capazes também das maiores barbaridades. A destrutividade faz parte do humano e a história testemunha a que ponto somos capazes de chegar. O homem se torna lobo do homem. Passamos a utilizar tudo quanto sabemos em nome de destruir aos humanos que consideramos diferentes de nós e por isso mesmo achamos que constituem uma ameaça a ser eliminada. Essa destrutividade pode se manifestar em muitos níveis e intensidades, indo desde um não olhar no rosto e dar bom dia, até o ato de violência mais cruel e mortífero.



Então, o que é humanizar? Entendido assim, humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. Ou seja, o sofrimento humano, as percepções de dor ou de prazer no corpo, para serem humanizadas, precisam tanto que as palavras com que o sujeito as expressa sejam reconhecidas pelo outro, quanto esse sujeito precisa ouvir do outro palavras de seu reconhecimento. Pela linguagem fazemos as descobertas de meios pessoais de comunicação com o outro, sem o que nos desumanizamos reciprocamente.



Isto é, sem comunicação não há humanização. A humanização depende de nossa capacidade de falar e ouvir, pois as coisas do mundo só se tornam humanas quando passam pelo diálogo com nossos semelhantes.

O compromisso com a pessoa que sofre pode ter basicamente três, ou quatro, tipos de motivação. Pode resultar do sentimento de compaixão piedosa por quem sofre, ou da idéia de que assim contribuímos para o bem comum e para o bem-estar em geral. Pode resultar também da paixão pela investigação científica, que se funda sobre o ideal de uma pura “objetividade”, com a exclusão de tudo quanto lembre a subjetividade. Um quarto tipo de motivação de compromisso pode resultar da solidariedade genuína.



Cada uma dessas motivações tem conseqüências distintas no que diz respeito à humanização. É interessante se observar que no transcurso do século XIX as três estratégias de políticas de assistência à saúde que predominaram são aquelas fundadas na ética da compaixão piedosa, no utilitarismo clássico de Bentham e Stuart Mill e no discurso tecno-científico, sendo que existe uma complementaridade entre essas três estratégias.



Juntas, elas compõem as modernas estratégias de biopoder, que interferem em nossa existência na medida em que propõe uma nova utopia, a da saúde perfeita num corpo conceitual biônico Essas estratégias passam a assistir nossas necessidades mais elementares e íntimas, vigiando nossos movimentos, discutindo nossa sexualidade e vigiando nossos movimentos em nome de cuidar de nossa saúde. A saúde passa a ser valorizada como um bem acima de qualquer discussão, justificando assim formas coercitivas de controle social em nome da utilidade e da felicidade do maior número, da piedade compassiva pelos que sofrem e do condicionamento de comportamentos considerados mais saudáveis pelo saber médico científico higienista do momento. Tudo isso sem qualquer tipo de questionamento a respeito do que as pessoas envolvidas pensam e tem a dizer sobre o assunto. É preciso ressaltar aqui que a capacidade de cuidar, assistir e aliviar o sofrimento em saúde pública não implica necessariamente que a assistência seja uma intromissão coercitiva.



A utopia da saúde perfeita surge de forma clara na própria definição da saúde proposto pela OMS em 1948, como sendo o “estado de completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Essa definição tem o mérito de ampliar o escopo de um modelo estritamente biomédico de saúde como presença/ausência da doença ou enfermidade enquanto desvio da normalidade causada por uma etiologia específica e única, tratada pela suposta neutralidade científica da ciência médica. O aspecto utópico está contido na idéia de um estado de completo bem-estar.



Sabemos, desde Mal-estar na Civilização , que um estado de completo bem-estar simplesmente não existe, a não ser na morte, como estado absoluto de ausência de tensão. Bem ao contrário do que a utopia da saúde perfeita propõe, a civilização moderna vem exigindo da humanidade cada vez mais renuncias às satisfações de seus impulsos e oferecendo cada vez menos referências simbólicas em nome das quais essas renuncias poderiam ser suportadas.



A lógica da compaixão piedosa , por sua vez, compõe um jogo perverso e desumanizante, difícil de se evidenciar, pois é uma prática muito arraigada em nossa sociedade ocidental, tendo como figura principal no século passado a dama de caridade, que tinha um estatuto de benfeitora divina em função de seus atos de ofertar esmola e filantropia. A dama de caridade vem sendo progressivamente substituída pela enfermagem, herdeira maior dessa lógica que muitas vezes ainda motiva suas ações no ambiente hospitalar.



O aspecto desumanizante da compaixão piedosa está no fato de que ela faz das diferenças o fundamento para relações dissimétricas que ela institui entre o benfeitor e o assistido. Essa lógica instaura um exercício de poder de coerção e submissão sob um discurso de humanismo desapaixonado e desinteressado, gerando, além da obediência e da dependência, uma sensação de dívida e gratidão eternas pela caridade recebida.



Caponi ressalta que no ato de compaixão existe uma sutil defesa de nós mesmos, no sentido de nos libertarmos de um sentimento de dor que é nosso, pois o contratempo sofrido pelo outro nos faz sentir impotência, caso não corramos em socorro da vítima, e o temor de que o infortúnio possa nos acontecer. Ou seja, no ato de compaixão não estamos sendo completamente generosos e desinteressados, pois estamos indo, na verdade e em primeiro lugar, em socorro de nós mesmos.



Outro aspecto é que existe na compaixão um fundo de vingança disfarçada, de sadismo mesmo, pois é preciso que o infortúnio e a desgraça existam e aconteçam com o outro para que nós possamos nos aliviar de nossa própria angústia ao mesmo tempo que supomos que nos engrandecemos moralmente com nossa caridade. É por isso que no sentimento de compaixão, segundo Nietzsche , a dor alheia é despojada do que ela tem de pessoal, de singular e irredutível, pois o compassivo julga o destino sem se preocupar em saber nada sobre as conseqüências e complicações interiores que o infortúnio tem para o outro. Ou seja, quando realizamos atos de caridade, agimos impulsionados pelo júbilo sádico provocado pelo espetáculo de uma situação, masoquista, oposta à nossa.



O problema da compaixão, quando se amplia e passa a fundamentar políticas de assistência, segundo Caponi , é que ela permanece alheia ao diálogo e exclui a argumentação, pretendendo superar uma necessidade, que muitas vezes é urgente, pela força do imediatismo.

Outra forma de motivação do compromisso com a pessoa que sofre é fornecida pelo utilitarismo, que faz da procura da maior felicidade para o maior número a medida para todas os atos. Ou seja, um ato é correto se produz as melhores conseqüências para o bem-estar humano. Acredita-se no utilitarismo que o prazer ou bem-estar de um sujeito pode ser medido e comparado com o de outro. Como na cultura do individualismo a felicidade coletiva só pode ser pensada como a soma das felicidades individuais, o problema passa a ser como fazer com que a procura da felicidade individual possa ser integrada nessa felicidade coletiva. A solução passou a ser criar instituições de controle capazes de controlar e regulamentar as condutas dos indivíduos e dentre estas instituições está o hospital, além dos reformatórios, presídios, asilos, etc.



Nesse sentido, as instituições de assistência pública de saúde se fundamentam faz dois séculos pelos critérios de bem-estar geral, urgência social e de felicidade e interesse comuns. E suas ações, campanhas e programas partem das certezas de que sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem pretendem ajudar, sendo que supõe conhecer esse bem de um modo claro e distinto, sem necessidade de consultar antes aos “beneficiados”. Uma política de assistência fundamentada sobre esses pressupostos prescinde de argumentos, exclui a palavra e emudece qualquer diálogo.



Tanto a ética utilitarista, quanto a ética compassiva são, por si só, desumanizantes pelo fato de colocarem os princípios acima dos sujeitos envolvidos, banindo as decisões tomadas coletivamente com base no diálogo e argumentação, pois essas éticas consideram que os princípios religiosos ou de utilidade geral são os únicos que podem determinar de antemão o que dever ser levado em consideração e feito.



Uma terceira motivação de compromisso com a pessoa que sofre é trazida pelo discurso tecno-científico e a paixão que a suposição de objetividade e neutralidade da ciência desperta no homem moderno. O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios, sem dúvida, mas tem como efeito colateral uma inadvertida promoção da desumanização. O preço que pagamos pela suposta objetividade da ciência é a eliminação da condição humana da palavra, da palavra que não pode ser reduzida à mera informação de anamnese, por exemplo. Quando preenchemos uma ficha de histórico clínico, não estamos escutando a palavra daquela pessoa e sim apenas recolhendo a informação necessária para o ato técnico. Indispensável, sem dúvida. Mas o lado humano ficou de fora. O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. Um hospital pode ser nota 10 tecnologicamente e mesmo assim ser desumano no atendimento, por terminar tratando às pessoas como se fossem simples objetos de sua intervenção técnica, sem serem ouvidas em suas angústias, temores e expectativas (informação considerada desnecessária e perda de um tempo precioso) ou sequer informadas sobre o que está sendo feito com elas (o saber técnico supõe saber qual é o bem de seu paciente independentemente de sua opinião).



Por outro lado, o problema em muitos locais é justamente a falta de condições técnicas, seja de capacitação, seja de materiais, e torna-se desumanizante pela má qualidade resultante no atendimento e sua baixa resolubilidade. Essa falta de condições técnicas e materiais também pode induzir à desumanização na medida em que profissionais e usuários se relacionem de forma desrespeitosa, impessoal e agressiva, piorando uma situação que já é precária. É importante lembrar, com o poeta, que mesmo em tempo ruim, agente ainda dá bom dia! Sempre podemos nos questionar diante de circunstâncias adversas a respeito do que podemos fazer mesmo assim para melhorar.



Uma quarta motivação para o compromisso com quem está em sofrimento é propiciada pela solidariedade. A solidariedade abre uma perspectiva de humanização, pois ela somente se realiza quando a dimensão ética da palavra está colocada. Nesse sentido, segundo Caponi , a solidariedade implica uma preocupação por universalizar a dignidade humana, que precisa da mediação das palavras faladas e trocadas no diálogo com o outro para poder generalizar-se. Como uma relação autêntica com o outro implica um mínimo de alteridade e aceitação da pluralidade humana como algo irredutível, o laço social humanizante somente se constrói pela mediação da palavra. É somente pela mediação da palavra trocada com o outro que podemos tornar inteligíveis nossos próprios pensamentos, anseios, temores e sofrimentos. Nossos sentimentos e sensibilidades só tomam forma e expressão na relação simbólica com o outro. Enfim, as coisas do mundo se tornam humanas quando as discutimos com nossos semelhantes.



Nesse sentido, humanizar a assistência hospitalar implica dar lugar tanto à palavra do usuário quanto à palavra dos profissionais da saúde, de forma que possam fazer parte de uma rede de diálogo, que pense e promova as ações, campanhas, programas e políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade.

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Não é o dinheiro, estúpido


Não paute sua vida pelo dinheiro: seja fascinado pelo realizar e o dinheiro virá como consequência

SOU, COM FREQUÊNCIA, chamado a fazer palestras para turmas de formandos. Orgulha-me poder orientar jovens em seus primeiros passos profissionais.

Há uma palestra que alguns podem conhecer já pela web, mas queria compartilhar seus fundamentos com os leitores da coluna.

Sempre digo que a atitude quente é muito mais importante do que o conhecimento frio.

Acumular conhecimento é nobre e necessário, mas sem atitude, sem personalidade, você, no fundo, não será muito diferente daquele personagem de Charles Chaplin apertando parafusos numa planta industrial do século passado.

É preciso, antes de tudo, se envolver com o trabalho, amar o seu ofício com todo o coração.

Não paute sua vida nem sua carreira pelo dinheiro. Seja fascinado pelo realizar, que o dinheiro virá como consequência.

Quem pensa só em dinheiro não consegue sequer ser um grande bandido ou um grande canalha. Napoleão não conquistou a Europa por dinheiro. Michelangelo não passou 16 anos pintando a Capela Sistina por dinheiro.

E, geralmente, os que só pensam nele não o ganham. Porque são incapazes de sonhar. Tudo o que fica pronto na vida foi antes construído na alma.

A propósito, lembro-me de um diálogo extraordinário entre uma freira americana cuidando de leprosos no Pacífico e um milionário texano. O milionário, vendo-a tratar dos leprosos, diz: "Freira, eu não faria isso por dinheiro nenhum no mundo". E ela responde: "Eu também não, meu filho".

Não estou fazendo com isso nenhuma apologia à pobreza, muito pelo contrário. Digo apenas que pensar e realizar têm trazido mais fortuna do que pensar em fortuna.

Meu segundo conselho: pense no seu país. Porque, principalmente hoje, pensar em todos é a melhor maneira de pensar em si.

Era muito difícil viver numa nação onde a maioria morria de fome e a minoria morria de medo. Hoje o país oferece oportunidades a todos.

A estabilidade econômica e a democracia mostraram o óbvio: que ricos e pobres vão enriquecer juntos no Brasil. A inclusão é nosso único caminho. Meu terceiro conselho vem diretamente da Bíblia: seja quente ou seja frio, não seja morno que eu vomito. É exatamente isso que está escrito na carta de Laodiceia.

É preferível o erro à omissão; o fracasso ao tédio; o escândalo ao vazio. Porque já li livros e vi filmes sobre a tristeza, a tragédia, o fracasso. Mas ninguém narra o ócio, a acomodação, o não fazer, o remanso (ou narra e fica muito chato!).

Colabore com seu biógrafo: faça, erre, tente, falhe, lute. Mas, por favor, não jogue fora, se acomodando, a extraordinária oportunidade de ter vivido.

Tenho consciência de que cada homem foi feito para fazer história.

Que todo homem é um milagre e traz em si uma evolução. Que é mais do que sexo ou dinheiro.

Você foi criado para construir pirâmides e versos, descobrir continentes e mundos, caminhando sempre com um saco de interrogações numa mão e uma caixa de possibilidades na outra. Não dê férias para os seus pés.

Não se sente e passe a ser analista da vida alheia, espectador do mundo, comentarista do cotidiano, dessas pessoas que vivem a dizer: "Eu não disse? Eu sabia!".

Toda família tem um tio batalhador e bem de vida que, durante o almoço de domingo, tem de aguentar aquele outro tio muito inteligente e fracassado contar tudo o que faria, apenas se fizesse alguma coisa.

Chega dos poetas não publicados, de empresários de mesa de bar, de pessoas que fazem coisas fantásticas toda sexta à noite, todo sábado e todo domingo, mas que na segunda-feira não sabem concretizar o que falam. Porque não sabem ansiar, não sabem perder a pose, não sabem recomeçar. Porque não sabem trabalhar.

Só o trabalho lhe leva a conhecer pessoas e mundos que os acomodados não conhecerão. E isso se chama "sucesso".

Seja sempre você mesmo, mas não seja sempre o mesmo.

Tão importante quanto inventar-se é reinventar-se. Eu era gordo, fiquei magro. Era criativo, virei empreendedor. Era baiano, virei também carioca, paulista, nova-iorquino, global.

Mas o mundo só vai querer ouvir você se você falar alguma coisa para ele. O que você tem a dizer para o mundo?


NIZAN GUANAES, publicitário e presidente do Grupo ABC

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